quarta-feira, 23 de março de 2011

NÃO TEM NADA NA AMAZÔNIA?

Está próximo o dia em que teremos em nossa terra querida o show de uma banda chamada RESTART. Minha filha ligou para mim na hora do trabalho enlouquecida dizendo onde eu podia comprar o seu ingresso. Seu entusiasmo era tamanho, que fiquei tentada a fazê-lo na mesma hora, mas acabei me atrasando e não o fiz.

Em casa foi o assunto do dia. Por isso, a noite, meu filho disse que salvou um vídeo onde essa banda falava mal da Amazônia. Eu não acreditei, mas não seria a primeira vez que isso iria ocorrer com a gente.

E, infelizmente, ele estava certo. Um dos calças-colorida (seria o nome mais adequado para a banda), disse que uma das cidades onde não tocou e gostaria de tocar, era o Amazonas. Primeiro, não é de se admirar que ele não saiba a diferença entre um estado, uma cidade ou mesmo uma região. Confundiu tudo...

Depois ele explicou porque seria legal tocar no Amazonas: imagina tocar num lugar só mato, onde não sabemos nem se tem público, civilização, em que a gente acha que não tem nada...

Coitado desse menino. Coitada da minha filha e da minha sobrinha. Coitados, os tantos adolescentes que compram essas calças coloridas...

Uma banda que não respeita seu público, que não conhece seu país.

Depois do than, than, than, than, um colorido que empobrece a nossa juventude.

Mas, como professora e de naturalidade amazônida, me sinto tentada a pedir que mais uma vez digamos ao Brasil, quem somos nós: o maior rio do mundo, as andorinhas no seu balé, o pirarucu no leite de coco, a super lua em muitos dias de cada ano, vento, vento, o cupuaçu estonteante, o marabaixo e sua tradição, o meio do mundo e seu poder místico, a pororoca e sua força, o açaí, a vastidão do curiaú...

Ah, Restart, o Amapá tem muito a te oferecer, mas eu não te ofereço mais a ingenuidade e a alegria da minha filha e da minha sobrinha. Elas não vão mais ao show.

Isso o Amapá não pode mais te oferecer. Entretanto, desejo que saia daqui refletindo que somos um país ainda bastante ignorante, porque alguns sempre se acharam mais civilizados do que outros, porque alguns sempre acharam que tinham mais a oferecer do que outros, porque alguns sempre se acharam melhor do que outros.

Isso é a tristeza da colonização. Vocês são a tristeza dela e da globalização..., mas égua, não, é melhor parar por aqui, isso são conceitos profundos demais para um calça-colorida.

CARLA NOBRE, POETA, PROFESSORA, MÃE.


SAUDAÇÕES LITERÁRIAS E TUCUJU

sexta-feira, 11 de março de 2011

O caso Capiberibe

Roberto Amaral*

Os dois mais nocivos dos inumeráveis defeitos de nosso processo eleitoral são a insegurança jurídica, produto de jurisprudência movediça e ingerência legiferante do TSE, contrariando princípio básico do Estado de Direito Democrático, a saber, regras certas e imutáveis durante o jogo e a usurpação da soberania do povo, base da legitimidade da democracia representativa, que repousa no voto.

Na República Velha, não bastava ser eleito, pois o mandato dependia da aprovação das Comissões Verificadoras de Poderes. Era o chamado terceiro escrutínio. No regime militar, vivemos idêntica experiência quando, sobre a soberania popular, ergueu-se o poder da japona, que decidia irrecorrivelmente quem podia e quem não podia ser votado e, após as eleições, “depurava” as casas legislativas mediante a cassação de mandatos.

Hoje, de novo, não basta ser eleito, é preciso passar pelo escrutínio dos juízes. Depois da japona, é a ditadura da toga. Com o silêncio de quase todo o mundo e a omissão autofágica do Congresso, estamos assistindo a um novo caso Dreyfus, mas lhe falta um Zola. As novas vítimas não estão ameaçadas de cárcere perpétuo, como o jovem oficial francês, mas contra elas já foi lavrada a sentença de sua dupla morte política e a infâmia de um vício (compra de votos) que não cometeram.

Em 2002, João Alberto e Janete Capiberibe são eleitos (PSB) senador e deputada federal pelo estado do Amapá, são diplomados e empossados, passando a exercer o mandato legitimamente conquistado nas urnas. O PMDB aciona o Ministério Público local e este inicia processo para apurar acusação (baseada exclusivamente numa prova testemunhal autodesmentida), segundo a qual o senador e a deputada teriam comprado dois votos por R$ 26. Hoje está demonstrado que as testemunhas haviam sido subornadas pelo candidato derrotado, mas, na ocasião, o TSE não apreciou o vício por uma tecnicalidade processual e, em 2004, os dois parlamentares tiveram seus mandatos cassados. Assume a vaga de Capiberibe no Senado o candidato derrotado nas urnas, Gilvam Borges.

Em 2006, sem mandatos, João Capiberibe é candidato ao governo do Amapá (não se elegeu) e Janete, a deputada federal, tornando-se campeã de votos. É diplomada, toma posse e exerce integralmente o mandato. Em 2010, Janete se candidata à reeleição, é novamente eleita, mas não pôde ser diplomada, por decisão do TSE; o mesmo ocorreu com João Capiberibe, eleito senador; e, por consequência, toma posse, de novo, o mesmo usurpador, uma vez mais derrotado nas urnas por Capiberibe. O senhor Borges está lampeiro e fagueiro sentado numa poltrona do Senado Federal.

Diz o TSE que o senador Capiberibe e a deputada Janete foram alcançados pela chamada Lei da Ficha Limpa, que torna inelegível, pelo prazo de oito anos, a contar da eleição, quem tenha sido condenado por “órgão colegiado da Justiça Eleitoral”.

A decisão é um amontoado de injuridicidades. Vejamos: 1. Inconstitucionalidade. A Lei da Ficha Limpa não pode ser aplicada às eleições de 2010, por força do ainda vigente artigo 16 da Constituição Federal, que exige, expressamente, que a lei que modifique o processo eleitoral só produza efeitos um ano após sua publicação. 2. Violação do princípio da irretroatividade. A condenação se deu em 2004, e a lei, que é de 2010, não poderia produzir efeitos em relação a fatos a ela anteriores. 3. Dupla condenação (bis in idem). O senador já havia sido condenado em 2004 com a perda de seu mandato e volta a ser condenado pelo mesmo “crime”, com a perda do novo mandato adquirido em 2010; idem relativamente à deputada. 4. Violação do princípio da segurança jurídica. A Lei da Ficha Limpa veio alterar situação jurídica já consolidada, cujos efeitos se esgotaram com a perda do mandato do senador e da deputada em 2004. A nova decisão, repetente, altera a própria condenação judicial, que, à época, compreendia, apenas, a cassação do registro e do diploma do candidato, e não gerava inelegibilidade.

O TSE cria a pena continuada, ou permanente. João Capiberibe e Janete sofrem a cassação de dois mandatos (no caso do senador, já 16 anos), o segundo sem nenhuma acusação de vício, mesmo falsa, ou inquérito, ou processo. Este “terceiro escrutínio” do TSE lembra os tempos dos tapetões da CBF, quando os campeonatos eram decididos pelo Tribunal de Justiça Desportiva.

* Advogado e cientista político, vice-presidente do Partido Socialista Brasileiro (PSB). Foi ministro da Ciência e Tecnologia. Artigo publicado no domingo de Carnaval 6 de março no Correio Braziliense.